Caderno de Campo Altos e Córregos do Recife e Olinda - Diário de Campo 1: Alto do Eucalipto 09/03/2022
Posted by Carlos Lunna on 6 June 2024 in Brazilian Portuguese (Português do Brasil). Last updated on 2 July 2024.Este é o primeiro entre os diários de campo que compõem o caderno de campo da minha pesquisa sobre interações sociotécnicas nos Altos e Córregos da Zona Norte do Recife e sua área contígua em Olinda, cidades localizadas na Região Metropolitana do Recife (RMR). Mais detalhes sobre a pesquisa vocês podem ver na minha tese de doutorado, publicada em https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/48802. Para a tese a delimitação socioespacial foram os Altos e Córregos da Zona Norte do Recife, a parte de Olinda foi agregada depois da tese.
Os diários de campo foram realizados em minhas idas ao território objeto de estudo. Nessas idas sempre registrei o percurso com o aplicativo OSM Tracker. Esses tracks eu coloquei no uMap, esse é o link do track deste diário de campo http://u.osmfr.org/m/1079569/. Embora quase sempre o OSM Tracker seja bastante preciso, nesse caso ele traçou uma linha bastante estranha, que não condiz com o percurso percorrido. Contudo, ele reproduziu as andanças no entorno da Rua Camboriú, local onde concentrei a maioria das informações.
Segue o relato que escrevi na época, na íntegra:
Marquei com Roberto (nome fictício), aluno do curso de Recondicionamento de Computadores realizado no CRC/Marista em 2012, no terminal dos ônibus do Vasco da Gama, no Alto do Eucalipto. Os bairros que faziam parte de Casa Amarela até 1988 e foram desmembrados, formando os bairros da Mangabeira, Alto José do Pinho, Alto José Bonifácio, Vasco da Gama, Nova Descoberta e Macaxeira, são subdivididos em córregos e altos. No caso do Vasco da Gama, um dos altos que fazem parte dele é o Alto do Eucalipto. Quando cheguei ao local Rodrigo estava acompanhado de mais um ex-aluno do CRC na época dela, que se apresentou como Junior(nome genérico), senti um certo constrangimento em dizer exatamente seu nome, por isso não perguntei, pois não tinha tanta relevância para a entrevista. Com isso entrevistei os dois, além de ter tido conversas informais com ambos, tanto no caminho para o lugar que eles escolheram pra eu entrevistá-los quanto na volta quando eles gentilmente me acompanharam de volta ao terminal para que eu tomasse o ônibus de volta pra casa.
De inicio devo colocar que o Alto do Eucalipto não é um local estranho para mim, já tinha ido outras vezes lá quando trabalhei na produção do curta metragem Sementes do Eucalipto https://www.youtube.com/watch?v=jIR7WlBFE38&t=227s , entre 2016 e 2017, também voltei ao local depois que o filme ficou pronto para a exibição na comunidade em 2018. Entretanto, eu sempre ia de carro com os outros rapazes que trabalharam no filme e entrávamos no bairro, vindos da Avenida Norte, direto pelo centro comercial do Vasco da Gama quando em seguida subíamos direto para o Alto do Eucalipto. Para esta entrevista fui de ônibus o que me permitiu ter uma visão completa do bairro do Vasco da Gama, passando por seus vários altos e córregos e tendo, em muitos dos pontos, uma vista muito interessante dos morros da zona norte, os da RPA 3 e alguns da RPA 2, em alguns pontos da pra avistar Olinda e em outros a paisagem de prédios que compõem os bairros localizados na planície da zona norte e oeste.
Quando marquei a entrevista com Rodrigo, pedi pra que ele me levasse a algum espaço público no bairro, onde pudéssemos gravar a entrevista com pouca interferência de barulhos. Falei em espaço público para não dar a entender que gostaria de ser recebido em sua casa, o que poderia incomodar a ele e aos outros residentes na casa. Eles escolheram um espaço cimentado no pé de uma escadaria onde havia a marcação de uma espécie de campo ou quadra, onde eles disseram que seria uma praça, chegando a ser inaugurada pelo prefeito e vereadores do bairro. Mas, além do espaço havia a marcação, aparentemente feita pelos moradores e luzes de led, o que Júnior e Roberto apontaram como única benfeitoria na suposta praça. Apontaram também que os moradores reivindicam uma área de proteção, pois as bolas caem nas casas dos vizinhos ou no barranco o qual a praça fica rente.
No caminho fomos conversando informalmente, sobre as outras vezes em que estive no Alto do Eucalipto e sobre o amigo que nos colocou em contato. Este amigo em comum trabalhou como técnico em inclusão digital no CRC/Marista no momento em que Junior e Roberto foram alunos. Lá nos sentamos e começamos a entrevista. Tem uma barreira ao pé da área cimentada e um grande Alto em frente, que os entrevistados me disseram ser o Alto da Foice, que também faz parte do Vasco da Gama. Em certa altura da entrevista falamos sobre o Compaz Alto Santa Terezinha e eles o apontaram na paisagem, um prédio escuro destacado dos tons de marrom que prevalece, pela prevalência das telhas.
Enquanto fazíamos a entrevista, uma criança passeava com um passarinho na gaiola ouvia-se o vento correndo, o som de pássaros e motor de moto roncando longe. Num dado momento chegaram dois rapazes que aparentavam cerca de 16 anos de idade e começaram a enrolar um fumo em folha de seda. Os dois cumprimentaram meus interlocutores, depois perguntaram se tínhamos isqueiro. Diante da resposta negativa se retiraram do local. Fizemos a entrevista aí em clima de tranquilidade, quase isolados do bairro, de maneira que foi possível gravar o áudio limpo, tranquilamente.
Depois de cerca de uma hora nos retiramos em direção ao terminal de ônibus. Os rapazes que entrevistei cumprimentaram alguns transeuntes, como já estava perto das 17 horas, já havia movimentação de pessoas indo buscar as crianças na escola. Fomos no caminho conversando sobre os problemas do bairro, falta de oportunidades, falta de cursos profissionalizantes. Passamos por uma barbearia e Roberto comentou que é um serviço que tem apelo na comunidade, que seria bastante útil um curso ensinando essas habilidades se fosse realizado lá. Falou também que cursos na área de tecnologia também seriam muito importantes na área. Rodrigo e Júnior me apontaram uma barreira que deslizou entre 2009 e 2010, eles não souberam precisar o ano, em que Júnior quase se acidentou, mas escapou. Perguntei se houve mortes nesse deslizamento ele disse que não, mas que houveram muitos danos materiais nas casas.
No caminho, encontramos uma lixeira feita com carcaças de máquinas de lavar, o que mostra o potencial de criatividade em criar objetos com materiais que seriam descartados da população do bairro. Durante a entrevista Roberto havia mencionado a ausência de coleta seletiva e o fato dos moradores acumularem muita areia e entulhos no bairro, apesar da coleta de lixo passar diariamente. Ele destacou que a coleta não dava conta, porque rapidamente as pessoas sujavam.
Nesta caminhada Júnior falou que já tinha feito parte dos escoteiros. Roberto apontou a Unidade de Saúde da Família do bairro, dizendo que ela estava em vias de ser retirada do bairro e que a clinica geral que atende lá faz menos atendimentos que o necessário, que ela é famosa por atender menos e não dar conta da demanda por consultas da comunidade. Dias antes havia chovido no Estado de Pernambuco e eles falaram que após a chuva apareciam muitas tanajuras no Alto do Eucalipto. Tanajura é uma espécie de formiga com asas que tem, na sua parte traseira, bastante gordura. As pessoas costumam fritá-las com manteiga ou margarina e comerem misturada com farinha. A caça por elas se torna um evento, sobretudo para as crianças, que ficam tentando pegá-las com camisas. Júnior e Roberto falaram que até a pizzaria aproveitou as tanajuras e fez uma pizza inclusive mais cara. A pizza que normalmente custa entre 35 e 45 reais dependendo do sabor, estava sendo vendida por 58 reais quando acrescida da tanajura.
Por fim, eles ressaltaram que é um bairro tranquilo “comparado com outros altos”, essa é uma sensação que os moradores locais também já haviam me retratado quando estive lá para produzir o curta metragem. Eles não disseram quais altos seriam os opostos ao Alto do Eucalipto no quesito violência, mas durante a entrevista citaram o Alto Santa Terezinha e Alto do Pascoal como bastante violentos. Perguntaram se eu tinha ido lá e que eu tivesse bastante cuidado se fosse. Por fim, o caminho de volta no ônibus passando pelo mesmo percurso da vinda com movimento e paisagens de final de tarde no subúrbio do Recife.
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